“Samora Machel era um visionário”
Feliciano Moreira Bastos, o decano dos professores da faculdade de Filosofia da Universidade Agostinho Neto, encontra-se em Maputo, Moçambique, a participar num colóquio sobre o primeiro presidente do país, Samora Machel. O filósofo, assumidamente de esquerda, fala com entusiasmo do passado, com alguma apreensão do presente e com esperança no futuro.
Como surgiu o convite para intervir neste colóquio centrado na figura do Presidente Samora Machel?
Moreira Bastos (MB) – Sempre tive ligações estreitas com Moçambique. Na última vez que estive cá, em Março passado, em conversa, tive a oportunidade de revelar a minha admiração por Samora Machel. Para mim continua a ser um grande presidente. A nível institucional existe também uma relação forte com Moçambique. Sou decano da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto e, no quadro da nossa parceira com a UEM e com a Universidade Pedagógica, venho muito a Maputo. Fiquei muito lisonjeado quando recebi o convite do Professor Jorge Ferrão, o Magnífico Reitor da Universidade Pedagógica, para participar no colóquio sobre Samora Machel. Nunca recusei nem nunca recusarei um convite para falar de Samora.
Disse, numa das suas intervenções no colóquio, que o presidente Samora Machel foi um construtor de pontes entre Angola e Moçambique. Em que sentido?
MB – Quando falo em pontes, falo no sentido filosófico do termo, do diálogo permanente e sistemático e da relação dialética que existia entre o programa e a visão estratégica da Frelimo e o programa e a visão estratégica do MPLA. A Frelimo e o MPLA são dois irmãos siameses, nunca se irão separar, devido à história comum. Ambos estiveram na Tanzânia. Agostinho Neto esteve na Tanzânia, Samora esteve na Tanzânia, Mondlane, Marcelino dos Santos, Lúcio Lara e muitos mais também estiveram.
Havia uma relação especial de Samora com Angola diferente de outros partidos irmãos como ANC, ZANU, SWAPO?
MB – A minha percepção, e digo que não faço política, não sou político sou académico, é que havia essa intimidade, essa relação muito forte, sem dúvida devido à questão da língua e da história comuns. Angola e Moçambique são os dois grandes lusófonos de África, que desempenharam um papel fundamental na luta de libertação do Zimbabwe, da Namíbia e da África do Sul. Eles [Samora e Neto] não faziam nada sem conversar primeiro um com o outro. Hoje é preciso resgatar este nível de ternura, de irmandade, de solidariedade. Parece-me que actualmente anda um pouco arredio.
Quer dizer que a Frelimo e o MPLA já não têm aquela união de outrora?
MB – Não deixaram de a ter, mas é preciso que se intensifique.
O que levou a este afastamento?
MB – Penso que se deveu à mudança dos tempos. Os objectivos alteraram-se. Essa proximidade maior de outrora também se devia à existência de objectivos muito claros: a independência do Zimbabwe, da Namíbia e o fim do apartheid na África do Sul. Esses objectivos foram todos alcançados. Por isso, Neto e Samora foram considerados verdadeiros libertadores, ao contrário dos francófonos e anglófonos, cujas independências foram dadas de bandeja, nós tivemos de conquistá-la.
No pós-independência, os dois países eram de orientação socialista, hoje são países neoliberais, muito virados para o modelo ocidental, anteriormente estavam virados ao leste. São coisas do destino histórico. Nós, em Angola, temos a guerra na República Democrática do Congo. A Frelimo tem as atenções viradas para o terrorismo em Cabo Delgado. Pode parecer que não, mas esses problemas desviam um bocado a atenção e o relacionamento entre os dois países.
Em 1979 morre o presidente Agostinho Neto. Lembra-se da reacção do presidente Samora à morte do amigo?
MB – Lembro-me sim. Se em Angola houve muita tristeza e emoção, sentimento de perda, em Moçambique também houve. Sentimos muita solidariedade da parte de Samora.
A génese do MPLA e da Frelimo é diferente. O primeiro nasce numa realidade urbana, o segundo numa realidade rural. Esse facto nunca originou atritos?
MB – Nunca houve nenhuma confrontação por causa disso porque os líderes eram visionários. Eduardo Mondlane e Agostinho Neto. Tenho muita pena que Mondlane tenha sido assassinado tão precocemente. Às vezes faço uma conjectura: o que seria Agostinho Neto, médico, e Mondlane, sociólogo, como é que seria a medicina e a sociologia juntas!
A África Austral registou muitas conquistas nos últimos 50 anos. O que falta agora conquistar nesta região?
MB – Há uma coisa que me está a preocupar: a consolidação da SADC. Tem de ser, efectivamente, uma verdadeira comunidade regional, que inclua a livre circulação de pessoas e bens, a criação de uma moeda única, uma maior e melhor cooperação. Desta forma teríamos uma espécie de União Europeia. Esse é o meu sonho.
Acha possível esse sonho tornar-se realidade, uma vez que os países se encontram em estádios de desenvolvimento muito distintos?
MB – A África do Sul tem claramente a dianteira, mas não em todos os aspectos. Esta liderança é sobretudo económica. Cada país tem o seu potencial, mais ou menos, explorado. Eu gosto muito da África do Sul, adoro lá ir, mas é preciso que tenham muita contenção em relação à xenofobia. Eles possuem um sentimento de superioridade em relação aos países vizinhos. Isso deve ser combatido. Uma relação não pode ser feita nessa base. Penso que isso também afecta o ímpeto da SADC. Mas
depende dos líderes que estejam no poder. Com Jacob Zuma, pelo menos em relação a Angola, as coisas estavam a fluir bem. Agora nem tanto. Há um certo cinismo do actual presidente da África do Sul. Eu estava na África do Sul quando foram mortos moçambicanos e zimbabweanos em tumultos ligados à xenofobia. Mas afinal quem é que os libertou? Não foi Moçambique e Angola? Quem é que libertou o Zimbabwe? Havia guerrilheiros do ANC e da ZANU em Angola e Moçambique! Assim como havia gente da FRETILIN, da Frente Polisário [movimento independentista do Saara Ocidental]. Os grupos eram divididos: X para Moçambique, Y para Angola. O dois países suportaram custos elevados. Não nos podemos esquecer disso.
Como é que vê hoje o futuro da CPLP?
MB – Para mim a CPLP tem um problema que reside no facto de Portugal estar integrado na União Europeia. Este é um factor que dificulta muito a aceleração dos objectivos da comunidade.
Mas todos os outros países também estão inseridos em organizações regionais…
MB – Isso é um facto, mas não existe tanta exigência como na União Europeia. A União Europeia precisa de compreender que entre os chamados PALOP e Portugal há uma relação e intimidade muito forte, inabalável. Aí corre a língua comum, corre sangue comum e de que maneira! Existe uma relação de 500 anos, que mais ninguém tem. Acho que Portugal sente isso, quer participar mais, mas as restrições e os compromissos da União Europeia impedem. Mas estamos a fazer o nosso caminho. Agora já foi resolvido o problema da mobilidade, o que vai aproximar mais os povos. Quanto ao resto está tudo bem. Temos uma relação muito forte com Portugal.
Concordou com a adesão da Guiné-Equatorial à CPLP apesar deste país não ter preenchido todos os requisitos necessários à adesão, nomeadamente a existência ainda da pena de morte na legislação?
MB – Em estive na Guiné-Equatorial em 2007, sei que, de então para cá, mudou muito. Não devemos deixar a Guiné-Equatorial sozinha, não obstante ser o único país da África Subsaariana de língua castelhana. Devemos integrá-la, mas exigir que ela respeite os direitos humanos, que desenvolva a língua portuguesa, que registe uma maior abertura, uma maior liberdade, mais democracia e inclusão.
Tem acompanhado este processo pós-eleitoral em Moçambique?
MB – Eu sou suspeito. Sou muito vermelho, sou um académico de esquerda, não daquela esquerda que diz que é de esquerda de dia e à noite é de direita. Às vezes até me chamam comunista. Vejo com tristeza e amargura esta situação. Não estive no terreno, só ouvi umas coisas soltas, por isso não tenho uma opinião realista e verdadeira sobre o que se está a passar em Moçambique, mas não deixa de ser preocupante.
Numa palavra como descreveria o presidente Samora Machel?
– Visionário.
Por: João Vaz de Almada, em Maputo