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Como a questão angolana dividiu Kissinger e o Departamento de Estado

A questão de Angola, foi, durante muito tempo, truculenta na relação entre o Departamento dos Estados Unidos e Henry Kissinger, o antigo Secretário de Estado e Conselheiro de Segurança Nacional, que hoje, quinta-feira, dia 30, faleceu aos 100 anos.

O auge do confronto dá-se em 1975, ano da independência de Angola. Durante intensos debates em Washington sobre a guerra em Angola, Kissinger chega mesmo a dizer que Departamento de Estado se estava a comportar como um antro de prostitutas. A fúria de Kissinger culmina meses de antagonismo e divisões sobre a via a seguir pelos Estados Unidos na guerra civil que começava a intensificar-se ao longo de 1975 em Angola.

As crivagens são evidentes em milhares de documentos tornados públicos pelo Departamento de Estado sobre a política americana para a África Austral e devem-se essencialmente a visões diferentes das implicações do que se passa em Angola para os Estados Unidos.

Kissinger vê toda a problemática em termos da Guerra Fria com a União Soviética enquanto o Departamento de Estado vê Angola nos anos 1970 como um país sem interesse estratégico para os Estados Unidos.

Os documentos indicam claramente essas divisões como por exemplo uma reunião havida a 14 de Julho de 1975 quando o sub-secretário de Estado, Joseph Sisco, afirma que os interesses americanos em Angola não são tão importantes que mereçam acções clandestinas. Kissinger responde: “Estás disposto a deixar cair [Angola] nas mãos dos comunistas?” Sisco responde que “sim”. “E o Zaire?” Interroga Kissinger. “Não tenho a certeza de que isso vá acontecer,” responde Sisco.

Kissinger afirma, sarcasticamente, que “o Departamento de Estado está empenhado em assegurar que nada vai acontecer em Angola.”

O departamento tinha anteriormente enviado um memorando afirmando que os Estados Unidos não possuíam interesses vitais em Angola e que os riscos de intervenção eram “extremos”.

Nessa reunião Kissinger reitera o seu receio das consequências de uma vitória da União Soviética em Angola e o efeito que isso teria sobre o resto de África e diz não querer que ninguém “dê aos dirigentes africanos lições sobre a não-violência, amor e irmandade”.

Outras actas mostram Kissinger a queixar-se de ter pedido opiniões ao Departamento de Estado e de ter recebido o que descreveu de “uma resposta de choramingas”, uma referência a um documento em que o Departamento de Estado aconselha ao não envolvimento dos Estados Unidos no conflito angolano.

Numa reunião com diplomatas americanos Kissinger interroga: se Angola for tomada pelos comunistas que “conclusões é que os líderes africanos vão tirar dos Estados Unidos?” Kissinger acrescenta que o presidente do Zaire, Mobutu Sesse Seko, irá pensar que “se deixarmos Angola ir, então estamos a deixá-lo ir” fazendo notar que o que se passou no Vietname irá contribuir para esse modo de pensar. “Penso que se ele [Mobutu] é racional é nisso que ele está a pensar,” diz Kissinger .

Os documentos indicam que durante o período que antecede a independência de Angola o Conselho Nacional de Segurança emitiu um documento em que analisa a situação e dita três opções para os Estados Unidos:

 

Neutralidade; promoção activa de uma solução pacifica pela qual se criaria uma situação em que tanto a FNLA como a UNITA estariam em melhor posição de competir com o MPLA; e apoiar militarmente a FNLA e a UNITA com o objectivo de impedir que o MPLA alcançasse o poder.

Kissinger faz valer o seu ponto de vista em reuniões com o presidente Gerald Ford. Numa reunião datada de 17 de Julho de 1975, Kissinger faz saber ao presidente que “temos problemas enormes com o Departamento de Estado” que “apaixonadamente” não quer uma intervenção.

Kissinger argumentou também perante o presidente que “sem ao apoio dos Estados Unidos a outros movimentos, Neto (presidente do MPLA) ganha e o argumento que se ouve é que isso não tem importância.”

Actas de reuniões entre o presidente e Kissinger indicam que o presidente Ford concordou afirmando que “não fazer nada não é opção” pois significaria “perder a Africa Austral”. “Penso que podemos defender isto em público,“ defende Ford numa reunião a 18 de Julho de 1975. “Não vou deixar que alguém em Foggy Bottom (zona onde está situado o Departamento de Estado) me impeça de seguir em frente.”

Mas talvez a reunião em que animosidade de Kissinger para com o Departamento de Estado (que, ironicamente, ele chefiava na altura) seja mais visível numa reunião ocorrida a 18 de Dezembro de 1975 em que Kissinger se queixa abertamente de funcionários do Departamento de Estado estarem a transmitir informação a jornalistas afirmando que os interesses dos Estados Unidos em Angola se devem às riquezas do território. “O comportamento do Departamento sobre a questão de Angola é uma desgraça,” refere Kissinger no começo do encontro acusando o Departamento de Estado de “uma estupidez que o torna incapaz de política externa.” “Ninguém pode pensar que os nossos interesses em Angola se devem … às riquezas sem fim de Angola. Isto não é uma casa de prostitutas. Estamos a executar política nacional,” referiu agastado.

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