Desvendados mais alguns mistérios sobre os insectos de Angola
Luís Ceríaco, alentejano de gema, como o próprio se descreve, é zoólogo e historiador da ciência. Com vasto trabalho de campo efectuado em África, Luís liderou o grupo de investigação Biopolis-Cibio que efectuou 18 expedições, percorrendo praticamente todo o território de Angola, actualizando o número de espécies no que diz respeito a insectos.
As dunas do Sudoeste de Angola são um local que qualquer naturalista tem de visitar pelo menos uma vez na vida. Iniciando-se na região do Tômbua, representam o início do deserto do Namibe, estendendo-se praticamente até ao Sul da Namíbia. A sua altura e finas areias que vão do amarelo ao vermelho demarcam a fronteira entre a terra e o mar. Os seus abruptos sopés são incessantemente golpeados há milhões de anos pelas águas do Atlântico. Perante tudo isto, sentimo-nos pequenos e frágeis. Expostas ao calor e ao sol, as dunas relembram-nos de que não temos o equipamento fisiológico para sobreviver nelas muito tempo, e a forte ondulação marítima que fustiga a estreita praia facilmente enrola os nossos jipes e os transforma em sucata em poucos minutos.
No topo das dunas sentimo-nos um pouco mais seguros e temos uma vista mais alargada do deserto. Procuramos sinais de vida na imensidão, mas estes não se revelam facilmente. Ao longe vemos uma hiena castanha a correr na praia após se ter alimentado de uma carcaça de um leão-marinho. No horizonte conseguimos ver a silhueta de um órix. Aqui e acolá surge um pequeno tufo de plantas e perto delas conseguimos ver uma das duas espécies de lagartos que decidiram fazer das dunas o seu lar – o lagarto-das-dunas (Gerrhosaurus skoogii) e a lagartixa-de-bico-de-pato (Meroles anchietae).
Ambas as espécies têm adaptações morfológicas e fisiológicas que lhes permitem sobreviver nas dunas, sendo que talvez a mais impressionante seja a dos seus focinhos em formato de pá, que usam para escavar a areia quando mergulham nas dunas para escaparem a um predador ou para se esconderem do sol abrasador. Encontrar estas duas espécies era um dos objectivos da pequena incursão que fiz em Dezembro de 2013 numa das minhas primeiras expedições a Angola.
Acompanhado por colegas norte-americanos, mas também por técnicos e estudantes do então recém-fundado Instituto Nacional da Biodiversidade e Áreas da Conservação (INBAC) do Ministério do Ambiente de Angola, visitámos o Sudoeste de Angola naquela que viria a ser a primeira de um projecto para conhecer, estudar e cartografar a diversidade de anfíbios e répteis do país. Em 2013, por incrível que pareça, sabíamos muito pouco sobre quantas espécies de cobras, lagartos, sapos e rãs existiam no país – o único Atlas disponível datava de 1895.
Uma lagartixa misteriosa
Do topo de uma destas dunas avistámos aquilo que nos pareceu um oásis. Numa das baixas entre dunas encontrava-se um extenso tapete verde, composto por uma vegetação densa e emaranhada. Descendo até lá rapidamente, percebemos que debaixo do emaranhado havia algo que corria de um lado para o outro – uma pequena lagartixa diferente daquelas outras que sabíamos que lá íamos encontrar. De joelhos no chão, conseguimos apanhar alguns exemplares deste inesperado habitante do deserto, que, para nossa surpresa, se revelou um membro do género Trachylepis.
O género Trachylepis é composto por lagartixas cujo comprimento total raramente ultrapassa os 20 centímetros. Conhece-se actualmente quase uma centena de espécies, sendo que a sua grande maioria ocorre no continente africano. A sua aparência é tudo menos memorável: quatro patas bem desenvolvidas; cincos dedos em cada extremidade; uma cauda longa e elegante; olhos bem desenvolvidos; escamas largas na zona da cabeça e mais homogéneas ao longo do corpo. Na prática, uma banal lagartixa.
As suas cores são um pouco mais interessantes, variando do azul-metálico ao avermelhado, passando pelo castanho e preto. Ocorrem por praticamente todos os habitats disponíveis em África, e são maioritariamente insectívoras. Habitantes em dunas conhecem-se, no entanto, muito poucas.
Naquela manhã, num vale relvado das dunas do deserto do Namibe, repetíamos talvez algumas das perguntas mais vezes feitas na história da biologia – o que é, de facto, uma espécie e como podemos nós identificá-las?
As bases da ciência
O estudo moderno da história natural iniciou-se em meados do século XVIII. Desde então os naturalistas têm dedicado a vida a estudar, identificar e catalogar o mundo natural. A tarefa ainda está longe de ser concluída. Conhecemos cerca de dois milhões de espécies no planeta – as estimativas mais conservadoras dizem-nos que ainda falta conhecer, pelo menos, mais oito milhões. Ao longo destes quase três séculos, os registos do mundo natural, na forma de espécimes, foram-se depositando em colecções científicas, na sua maioria à guarda de museus de história natural.
Estes espécimes foram estudados – medidos das mais diversas formas, analisados ao ínfimo pormenor – de modo que se entendesse o seu lugar na árvore da vida. Como diferem entre si? Como estão relacionados? Os resultados destes estudos foram sendo publicados em livros e artigos, criando ao longo do tempo imensas bibliotecas científicas, autênticos catálogos do mundo vivo.
Contar milhares de escamas, sequenciar genes
Foi o regresso aos museus de história natural que permitiu que conseguíssemos tirar a limpo a identidade da Trachylepis das dunas do Namibe. Para tal, num vaivém de viagens, precisei de comparar os espécimes colectados nesta expedição com aqueles disponíveis em 28 museus e colecções de três continentes (Europa, África, América do Norte e América do Sul).
Como as características que diferenciam as várias espécies de Trachylepis passam pelo número de escamas ao longo do perímetro do abdómen e ainda uma linha desde a nuca até à cauda, a forma como as escamas da cabeça se arranjam entre si, o seu tamanho e proporções, mas também a sua coloração, analisei quase 800 espécimes destes animais – ou seja, dezenas de milhares de escamas contadas.
Número de espécies actualizado
No caso das lagartixas Trachylepis de Angola, os meus olhos não me traíram. A genética acabaria por confirmar as minhas observações originais – tínhamos 26 espécies em Angola, e aquela que colectáramos nas dunas do Sudoeste de Angola era uma entre sete completamente novas para a ciência. E como toda a espécie merece o seu nome, baptizámo-las com nomes científicos como mandam as regras da nomenclatura zoológica – latinizados e compostos por uma combinação do nome do género e seu epíteto específico, o seu nome próprio.
A espécie das dunas do Namibe foi baptizada de Trachylepis hilariae em honra da investigadora angolana Hilária Valério, que participara em várias das nossas expedições, incluindo naquela onde pela primeira vez encontrámos a espécie.
E assim, para além da Trachylepis hilariae, se deu a conhecer ao mundo a Trachylepis attenboroughi, a Trachylepis bouri, a Trachylepis ovahelelo, a Trachylepis suzanae, a Trachylepis vunongue e a Trachylepis wilsonii, todas elas nomeadas em honra de distintos padrinhos e madrinhas do mundo da ciência e de Angola, a sua pátria. O seu registo de baptismo ficou publicado num artigo na revista Bulletin of the American Museum of Natural History.
O número de espécies de Trachylepis registado para Angola foi actualizado. Conhecem-se agora 26 e conseguimos apontar as suas diferenças, as suas distribuições e os seus habitats. As provas deste conhecimento estão aí, acessíveis a todos os naturalistas que as queiram rever, através de espécimes em museus e dados, descrições e mapas num artigo científico.
As lagartixas Trachylepis continuarão a correr pelos sertões de Angola – tanto aquelas que conhecemos como aquelas que, porventura, nos falta conhecer. E no dia em que alguém encontrar outra num local inesperado e perguntar “a que espécie pertences tu?”, todo o processo recomeçará. Haja museus e colecções disponíveis.