
PAN intervém no Colóquio alusivo ao Dia Internacional da Família
A presidente da Assembleia Nacional, Carolina Cerqueira, discursou ontem, dia 15, no Colóquio alusivo ao Dia Internacional da Família sob o lema “A Família em Desenvolvimento”.
Confira o discurso na íntegra;
Excelentíssimos Senhores Vice-Presidentes da Assembleia Nacional,
Senhores Secretários da Mesa,
Senhoras Deputadas,
Excelência Senhora Juíza Jubilada, Júlia Ferreira,
Senhor Provedor Adjunto de Justiça,
Senhoras e Senhores,
Sejam bem-vindos a este Colóquio.
Queiram considerar todo o protocolo observado.
Há silêncios que gritam. Gritam em quartos fechados, gritam em becos escuros, gritam em salas de estar. Gritam em lugares que deviam ser lugares de afecto e de respeito, mas que se tornaram em lugares de sofrimento.
A família é o primeiro lugar onde a dignidade humana deve ser cultivada, respeitada e protegida. É no seio da família que se aprende o valor do cuidado, da escuta e da protecção. No entanto, infelizmente, é também no seio da família que, demasiadas vezes, se escondem as feridas mais profundas.
Certa vez, numa dessas visitas que fazemos junto da comunidade, foi-me contada a estória de uma menina de 10 anos. Chamava-se Lúcia.
Sentada num canto, de cabeça baixa, não respondia aos cumprimentos. Quando, com jeito, foi-lhe oferecido um caderno e lhe pediram para desenhar, ela desenhou uma casa. Mas dentro da casa, havia lágrimas. Muitas lagrimas.
Era ali que Lúcia chorava todos os dias.
Infelizmente, senhoras e senhores, a Lúcia não é a única.
Hoje, no seio de muitas famílias e de muitas comunidades — justamente onde as crianças deviam estar protegidas — cresce uma ferida invisível, mas profunda: a ferida do abuso. A violência sexual. A exploração infantil. Violência essa que, muitas vezes, é cometida por quem devia cuidar. Por quem devia amar.
Sei que é duro dizer. Mas é mais duro calar.
Não podemos mais aceitar que crianças sejam silenciadas dentro de suas próprias casas. Que pais usem os filhos como mão-de-obra gratuita. Que meninas sejam empurradas à prostituição, às vezes com o consentimento de adultos que se dizem responsáveis. A infância não pode continuar a ser negociada, explorada, violentada.
Chegou a hora de dizermos, com firmeza: basta.
É na família onde tudo começa — onde se constrói o ser humano, os valores e os sonhos. Mas quando essa base se desfigura, quando o que deveria ser porto seguro torna-se um lugar de dor e silêncio, é preciso parar. Reflectir. Agir.
Porque não há como falar de desenvolvimento sem falar, com coragem, dos desafios que atravessam o coração das nossas famílias.
Quantas crianças, neste momento, estão a sofrer dentro de casa?
Quantas têm o sorriso abafado por medos que nem sabem nomear?
Excelências,
A violação sexual no seio familiar é uma das realidades mais sombrias e escondidas da nossa sociedade.
Muitas vezes, o agressor tem rosto conhecido: é o pai, é o padrasto, é o tio, é o avó ou o vizinho. E o pior é que o silêncio, tantas vezes imposto pela vergonha ou pela dependência, transforma a vítima em prisioneira de uma dor que ninguém vê.
Não podemos mais aceitar isso como algo inevitável. Precisamos de proteger a infância com firmeza, com leis mais firmes, com instituições que funcionam e, sobretudo, com uma cultura de escuta, de acolhimento e de denúncia. Nenhuma criança deve crescer com medo do próprio lar.
Outro tema que clama por atenção é a prostituição infantil. Meninas e meninos lançados à rua, muitas vezes por imposição da própria família.
E é inaceitável que, em pleno século 21, ainda tenhamos crianças a vender o corpo, quando deveriam estar a segurar lápis e cadernos.
Precisamos de encontrar nelas a motivação para mudar.
Todos juntos, precisamos de romper com esse ciclo de exploração, com políticas públicas mais robustas, com abrigos para os menores, com mais educação e com uma justiça mais célere que atenta aos abusos contra crianças e adolescentes.
O trabalho infantil em que a criança deixa os brinquedos para carregar baldes, vender doces, lavar carros, porque “precisa ajudar em casa”, também deve merecer especial atenção.
Toda criança que trabalha cedo demais está a pagar um preço alto demais: o atraso no aprendizado, o cansaço precoce, o futuro encurtado, que traz consequências graves no seu desenvolvimento, e quando isso parte da própria família, é urgente intervir.
Há ainda a prática, cruel e disfarçada de tradição, dos casamentos entre menores ou entre adultos e crianças.
Essas uniões forçadas enterram sonhos, anulam trajectórias e perpetuam ciclos de submissão. Não há cultura que justifique a anulação da infância. Uma criança não pode ser esposa, nem pode consentir o que nem sequer compreende.
E isso precisa ser proibido por lei — com clareza e com firmeza, segundo as recomendações do Fórum Parlamentar da SADC.
Por isso, deixamos aqui os nossos apelos: que no Código Penal a violação da autodeterminação sexual da criança seja tratada como um crime gravíssimo, com penas exemplares e correspondentes. E com uma justiça cada vez mais especializada e atenta a esses casos, desde os agentes da 1ª linha das forças de segurança, passando pelos representantes do Ministério Público e finalizando nos juízes.
Que se reforcem canais reais de denúncia, apoio psicológico, assistência às vítimas e acompanhamento familiar.
Mas, acima de tudo, precisamos de mudar o olhar.
Precisamos de olhar para a criança como sujeito de direitos, como ser em formação, como prioridade absoluta.
E olhar para a família não como uma estrutura estática, mas como um espaço que precisa ser acompanhado, fortalecido e, quando necessário, corrigido com amor e justiça.
Não se trata apenas de punir depois que o mal já foi feito. Trata-se de prevenir. Trata-se de reconstruir a noção do que é ser família. A família não é apenas um grupo de pessoas que compartilha um tecto. As famílias são, ou deveriam ser, a primeira escola de humanidade, onde se aprende o valor do respeito, da empatia e da responsabilidade.
Precisamos resgatar o sentido mais profundo da família como núcleo de formação ética. Não se forma um cidadão digno sem referências claras de dignidade dentro de casa. E quando a casa falha, o Estado e a sociedade devem intervir, não como invasores, mas como garantia da protecção que cada criança merece.
Caros participantes.
É urgente recuperar e resgatar valores que normalizam a convivência, a família e a sociedade. Resgatar valores não significa apenas apegar-se ao passado, mas restaurar aquilo que é essencial: a integridade da infância, a sacralidade do corpo infantil, o respeito pelo tempo do crescimento.
Não podemos mais tolerar a sexualização precoce das crianças. A infância deve ser protegida; não erotizada, directa ou indirectamente através das redes sociais.
Nós como sociedade estamos a falhar quando permitimos que a indústria do entretenimento, a publicidade, as redes sociais estimulem comportamentos que empurram meninas e meninos para uma adultização violenta e destrutiva.
Devemos romper com a lógica do “tudo é normal” quando, na verdade, estamos a perder a sensibilidade para o que é profundamente anormal: crianças expostas a conteúdos impróprios, incentivadas a encenar papéis que não compreendem, transformadas em objectos de desejo para lucro fácil.
Senhoras e Senhores,
A actuação do Estado, por sua vez, é determinada na aplicação das leis e, sobretudo, na sua aplicação. Quem abusa de uma criança, quem consente ou acoberta o abuso, deve ser exemplarmente punido.
De acordo com a Lei modelo do Fórum Parlamentar da SADC, sobre a Protecção à criança, é imprescindível rever o tratamento legal dado aos crimes contra a dignidade sexual de menores, através de dispositivos que não deixem margem à impunidade. Que não permitam brechas interpretativas. A violação de uma criança é um acto de barbárie, e o ordenamento jurídico deve responder à altura dessa gravidade, que infelizmente ainda prevalece a nível da região dos países da SADC.
Ao lado das leis, a actuação das forças de segurança têm um papel determinante através de profissionais capacitados, com sensibilidade e preparo técnico, qualificados e humanizados para investigar, proteger e agir com rapidez e eficácia, pelo que encorajamos a Polícia Nacional a prosseguir nos esforços que está a desenvolver nesse domínio.
As forças policiais e os agentes do Poder Judiciário devem ter protocolos claros para lidar com as denúncias de violência contra as crianças. É preciso garantir protecção imediata, acolhimento psicológico e medidas cautelares eficazes.
Mas também é preciso investir na formação das famílias. Não há política pública eficaz sem o envolvimento directo da célula familiar, das igrejas, autoridades tradicionais e associações profissionais e da sociedade civil.
Campanhas educativas, oficinas parentais, acompanhamento psicossocial — tudo isso deve ser parte de um esforço contínuo para reeducar afectivamente os adultos que convivem com crianças.
Educar é mais do que prover comida e roupa. É ensinar o valor da escuta, da paciência, do limite saudável. Muitos pais e responsáveis reproduzem comportamentos abusivos que aprenderam em suas próprias infâncias. Romper com esses ciclos exige presença estatal, mas também a comunhão de esforços colectivos e conjugados.
Reafirmo, que cada autoridade, cada instituição, cada cidadão assuma com afinco a sua responsabilidade nesse combate. Que não esperemos mais estatísticas alarmantes para agir. A violência contra uma criança é uma emergência moral.
E mais do que tudo, é preciso devolver às crianças o direito de serem crianças,de brincar sem medo, de dormir em paz, de confiar nos adultos à sua volta. Esse é o futuro que devemos construir — e começa agora, com leis mais duras, famílias mais conscientes e uma sociedade que se recuse a ser cúmplice pelo silêncio.
Que sejamos, cada um de nós, a mudança que os pequenos precisam para crescer com dignidade, segurança e amor.
Como cidadã, como mulher, como mãe, avó e, sobretudo, como deputada, representante do povo, reafirmo o meu compromisso de não deixar que esta luta seja esquecida.
Esta sessão não deve terminar apenas com palavras, mas deve terminar com um pacto político entre todos nós aqui presentes: de que nenhuma criança será invisibilizada; de que nenhuma dor será normalizada; de que ajudaremos a construir uma cultura institucional onde proteger a infância e desenvolver a família sejam prioridades inegociáveis e estruturantes.
Porque a história julgará a nossa geração política por aquilo que fizemos ou deixamos de fazer pelas nossas famílias, pelas nossas crianças, pelo tecido moral da nossa sociedade. Que ela encontre em nós não o silêncio dos cúmplices, mas a voz firme dos que souberam, no tempo certo, assumir responsabilidades difíceis com a seriedade e a preparação que a função pública exige.
O futuro do amanhã começa hoje e começa em casa. E proteger a infância é a forma mais nobre de construir esse futuro com dignidade. Que sejamos capazes, como sociedade, de oferecer às nossas crianças não apenas um tecto, mas um lar; não apenas palavras, mas segurança; não apenas promessas, mas também protecção.
Agradeço a atenção de todas e de todos, e lanço o desafio e compromisso de colaboração para transformar este colóquio em acções legislativas, em políticas de Estado, em investimento estratégico e em justiça social.
Muito obrigada.