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Especialistas consideram actual Código da Família desajustado da realidade angolana

Especialistas de Direito da Família, entre magistrados judiciais e do Ministério Público, defenderam, quinta-feiraontem, a revisão do Código da Família, por considerá-lo desajustado da realidade cultural do país.

O posicionamento foi manifestado no primeiro de dois dias do Congresso Internacional do Direito da Família, prestigiado com a presença da Primeira-Dama da República, Ana Dias Lourenço, a presidente do Tribunal Constitucional, Laurinda Cardoso, entre várias entidades nacionais e brasileiras.

Ao discursar na abertura do Congresso, Arlindo Castro, presidente do Núcleo Angola do Instituto Brasileiro de Direito de Família, considerou o encontro, promovido pela instituição que dirige, oportuno, pois serve de resposta à escassez doutrinária que o país vive.

Arlindo Castro destacou o facto da conferência realizar-se por ocasião do 35º aniversário do Código de Família em homenagem à académica Maria do Carmo Medina, a quem considerou “a maior figura de representação do Direito da Família” em Angola. Apelou aos participantes e à sociedade, de modo geral, a darem o seu contributo no sentido de ser um Direito da Família mais próximo do cidadão e que sirva para “curar dores e não apenas a busca da justiça, porque nem sempre a justiça combina com o direito”.

No encontro em que participam advogados, professores de Direito, sociólogos e psicólogos, o professor catedrático José Octávio Serra Van-Dúnem reconheceu que as famílias enfrentam, hoje, desafios de natureza social, política, económica, demográfica e cultural, entre outros factores desafiantes para quem tem a responsabilidade de formular políticas públicas em benefício da família.

Ao fazer uma abordagem sobre o tema “O olhar sociológico sobre as dinâmicas das famílias, o caso de Angola”, Octávio Serra Van-Dúnem disse que a degradação de valores, verificada um pouco por todo o mundo, representa um desafio sem precedentes às famílias. “Nunca as famílias em todos os formatos se viram tão confrontadas como hoje, com tantas ameaças ao seu desenvolvimento e manutenção”, referiu.

O docente de Sociologia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto acrescentou à lista de desafios actuais da humanidade a criminalidade, o desemprego, a exclusão social e a degradação da condição económica das famílias. Nisto, disse ser fundamental que os Estados, as instituições públicas e privadas, empresas e pessoas sejam capazes de reforçar laços como o amor, o respeito e a compreensão da família, bem como humanizar as relações de proximidade.

Octávio Serra Van-Dúnem referiu-se às consequências do conflito armado em Angola, dizendo que “vivemos num país que foi assolado por uma longa guerra que afectou milhares de famílias, muitas das quais estão desestruturadas, desencontradas e desorientadas, tornando-se, por isso, completamente vulneráveis”. O também coordenador do Conselho Económico e Social defendeu a transformação da família em principal núcleo da sociedade, colocando-a entre as principais prioridades. Para tal, disse ser necessário que os especialistas estudem de forma profunda o fenómeno das famílias mais vulneráveis e se apontem soluções para os problemas.

  Reconhecimento do casamento tradicional

Na abordagem subordinada ao tema “O costume como fonte de direito das famílias”, o professor catedrático Carlos Feijó lamentou a inexistência, no Código da Família angolano, de um reconhecimento do pluralismo jurídico e cultural.

O também membro da Comissão da Reforma da Justiça, disse que se compreendia na época em que foi elaborado o referido Código, mas não se pode compreender agora, com a norma constante no artigo 7º da Constituição da República, que esse diálogo não se realize.

Defensor do direito costumeiro, Carlos Feijó disse notar um certo preconceito sobre o casamento tradicional, que muitos encaram como algo que promove a poligamia. O docente defendeu a abordagem de uma lei sobre o casamento tradicional como forma do direito. Apontou, como exemplo, para alguns países da SADC, como a Namíbia e a África do Sul, que estão a legislar sobre o assunto. Na região, Feijó apontou Angola e a Zâmbia como os países mais atrasados nesta matéria.

Trata-se de algo que o académico pareceu não entender, quando os países que partilham a região da África Austral reconhecem o costume como fonte de direito e de relações, modificação e instituição de relações jurídico familiares.

O presidente do IBDFAM, Rodrigo da Cunha Pereira disse existirem muitos pontos em comum entre a Constituição do Brasil de 1988 e a Constituição da República de Angola de 2010. Disse sentir um pouco de inveja por Angola ter um Código de Família, algo que o Brasil não tem, apesar de todos os esforços. Para Rodrigo da Cunha Pereira, “falar do Direito da Família é falar de amor e afecto”.

  Código desviado da realidade cultural

Para o advogado Sérgio Raimundo, o Código da Família deve ser revisto, pois tem-se desviado da realidade cultural do país. “A segurança jurídica deve, de facto, retratar aquilo que é a realidade cultural de um povo. Povo este, que é o destinatário da norma”, disse.

O também docente universitário mostrou-se satisfeito com a organização do evento de carácter científico e académico, cujas contribuições poderão servir de suporte para o processo de revisão do Código da Família.

Por sua vez, o advogado Sérgio Godinho mencionou que o documento deve ter um olhar atento às novas discussões feitas em torno dos temas ligados ao Direito da Família, e prever, igualmente, institutos novos, desfazendo-se de outros institutos que já não se justificam no contexto actual.

“O Código da Família é um instrumento legal, jurídico, em vigor desde 1988, mas também é verdade que a Comissão de Reforma do Direito e da Justiça esteve a trabalhar até ao momento da sua extinção, numa proposta de Código da Família, um novo código”.

Na sua abordagem sobre “Mediação e conciliação familiar”, o jurista disse que a última proposta levada à discussão do Código da Família não prevê a mediação, apesar de existir uma previsão na proposta do Código do Processo Civil.

“A mediação, seja ela judicial ou extrajudicial, é um mecanismo adequado de resolução de conflitos e deve ser promovido. Por maioria de razão, deve constar desses dois instrumentos estruturantes: o Código de Processo Civil e o Código da Família”, defendeu.

A advogada e docente universitária Ana Paula Godinho fez uma avaliação do congresso do ponto de vista positivo, pois “a actividade trouxe ao debate novas formas de constituição das famílias, assim como temas candentes sobre o Direito da Família”.

Maria Berenice Dias, juíza desembargadora no Rio Grande do Sul, considerou o evento, que hoje encerra, “bastante significativo”, pois junta juristas angolanos e brasileiros para tratarem de questões relacionadas ao Direito da Família, com vários formatos.

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