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Santos abriga um dos últimos descendentes diretos de africanos escravizados no Brasil

Embaré é um antigo bairro santista que foi formado e desenvolvido no entorno da capela Santo Antônio do Embaré, de 1874. Nesse mesmo lugar foi erguida depois uma igreja, elevada à condição de basílica, em 1952. Foi nela que, em 1966, Pelé se casou pela primeira vez, com Rosemeri Cholbi.

Reportagem de Fernando Granato – FOLHAPRESS

Fica ali também uma via com o sugestivo nome de Rua da Liberdade. Numa pequena casa azul de janelas verdes, vive sozinha uma senhora de 98 anos, Helena Monteiro da Costa, uma das últimas descendentes primeiro grau de africanos escravizados no Brasil.

Para a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, especialista em estudos da diáspora africana, a história de Helena é singular por sua trajetória completamente atípica. Isso porque ela é filha temporã de um africano que veio escravizado para o Brasil e viveu até os 110 anos; além disso, ela própria tem uma vida longa. Diante disso, a antropóloga não tem dúvidas em dizer: “Sim, penso que Helena é uma das últimas descendentes diretas de um africano escravizado no Brasil”.

Helena foi registrada no 1º Cartório de Registro Civil de Santos (no litoral paulista) com o nome de Cyrene, no Livro A 207, fls. 1999, sob nº 1.067. No registro aparece como sendo filha de Anízio José da Costa e Brasília Monteiro. O nome depois foi trocado no batismo católico para Helena, porque um padre reclamou que o primeiro nome seria pagão, como conta ela.

Alta, com as mãos grandes e olhos fundos, Helena traz no corpo as características de sua ancestralidade africana. Seu pai, Anízio José da Costa, tido como o mais longevo ex-escravizado a viver em Santos, foi sequestrado ainda garoto em Angola e embarcado para o Brasil naquele que foi o maior porto de navios negreiros da costa ocidental africana. Meses depois desembarcou em Santos e, de lá, foi levado diretamente para trabalhar numa fazenda de café no município de Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba paulista.

Depois de uma vida de sofrimentos e castigos na lida diária da fazenda, da qual guardou as marcas das chibatadas nas costas, Anízio foi vendido para trabalhar como escravo urbano na capital paulista. E, de lá, fugiu e se abrigou num grande quilombo que se formara nas imediações de Santos, o Jabaquara.

Quando veio a abolição, em 1888, o pai de Helena, também conhecido por Maninho, passou a ganhar a vida como carregador de sacos de café no porto. Era alto, com quase dois metros de altura, afamado por carregar até dois sacos nas costas. Pai de sete crianças, vivia com dificuldades financeiras e virou na cidade sinônimo de pobreza. Era comum que se usasse nos locais em que frequentava a expressão: “Fulano é pobre como Maninho”. Morreu em 1940, aos 110 anos, depois de ter trabalhado até os 108, como atestam os registros ainda existentes no Sindicato dos Ensacadores de Santos. Casou-se pela segunda vez aos 90 anos e se tornou pai de Helena aos 95.

Em sua edição de 25 de abril de 1940, o jornal A Tribuna de Santos noticiou a morte de Maninho. “Morreu com 110 anos, mas depois dos 90 constituiu família”, dizia a manchete do jornal. No subtítulo, informava-se que Anízio tivera sete filhos nos seus últimos 16 anos de vida. Numa foto, estava a viúva e os sete filhos, entre eles Helena.

Com o vigor físico herdado do pai, Helena é conhecida nas imediações da rua da Liberdade pelas atividades que exerce no alto de seus 98 anos. Com uma blusa azul e uma toca branca que esconde seus cabelos grisalhos, ela diz: “Nunca parei de trabalhar”.

Ainda adolescente, começou na labuta como empregada doméstica. “Com 14 anos, já era cozinheira de forno e fogão”, conta. “Só com uma família, fiquei mais de 50 anos. Trabalhei tanto que não tive tempo de casar e ter a minha própria família.”

Sentada no alpendre de sua casa de três cômodos, sem forro ou laje, Helena lembra que o pai gostava de tomar uma cachacinha e ouvir samba. Falava pouco sobre a vida na África. Usava uma corrente no pescoço com um pentagrama. Segundo Lilia Schwarcz, esse era um adereço comum dos africanos, que significava esperança.

Helena recorda também que o pai era muito querido por todos e não gostava de se meter em confusão. Motivo pelo qual não teria aderido a primeira grande greve dos funcionários do Porto de Santos, em 1891. “Ele contava que não tomou parte, não queria se indispor com o patrão”, disse. De acordo com a pesquisadora Lucia Caira Gitahy, que estudou a fundo o movimento operário do Porto de Santos, muitos ex-escravos foram usados naquela ocasião como massa de manobra para furar as greves contra as Docas.

Hoje aposentada, Helena encontra tempo e disposição para trabalhar como voluntária no Exército da Salvação. Como vive sozinha, faz as refeições na rede Bom Prato, do governo do estado, que distribui alimento a preço de custo, para não precisar cozinhar. Em casa, gosta de cuidar das plantas. No pequeno quarto, com uma cama de solteiro, um abajur, uma colcha azul e uma almofada com araras estampadas, ela só entra à noite para dormir.

“A vida é muito curta para gastar dormindo”, diz. “Por isso nunca me deito durante o dia.”

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