Gorbatchov, o último presidente da União Soviética
Elogiado no estrangeiro como um promotor da liberdade, a nível interno foi frequentemente acusado pelos anos de caos, sobretudo económico, que se seguiram à queda da URSS. Acabou por sobreviveu tempo suficiente para ver a Rússia regressar à autocracia sob o domínio de Vladimir Putin.
Mikhail Gorbatchov, o último presidente da União Soviética, faleceu esta terça-feira, aos 91 anos, vítima de doença prolongada. A notícia foi avançada pelas agências noticiosas russas, que citam o Hospital Central Clínico de Moscovo onde o político estava internado.
Elogiado no estrangeiro como um promotor da liberdade, a nível interno foi frequentemente acusado pelos anos de caos, sobretudo económico, que se seguiram à queda da URSS. Acabou por sobreviveu tempo suficiente para ver a Rússia regressar à autocracia sob o domínio de Vladimir Putin.
Gorbachev foi o último presidente da União Soviética. Tornou-se secretário-geral do partido comunista (PCUS) em 1985, com apenas 53 anos, cargo que ocupou até à dissolução do próprio partido em 1991, com o desaparecimento da União Soviética. A sua decisão de não usar a força para impedir a queda do Muro de Berlim, alegou mais tarde, pode ter evitado uma Terceira Guerra Mundial.
Gorbachev está associado às tentativas de modernizar e melhorar a União Soviética por dentro, um processo do qual acabou por perder o controlo, conduzindo, paradoxalmente, ao colapso do país. Em 2011, numa entrevista ao jornal britânico “Guardian”, confessou que uma das suas realizações de que sentia mais orgulho foi a sua política de perestroika – reestruturação – concebida para ressuscitar uma economia moribunda. Com ela veio a glasnost – transparência – um conceito que engloba liberalismo e pluralismo político, após décadas de partido único e de forte repressão a quem a ele se opunha.
Obreiro do fim da Guerra Fria
Para além das reformas internas, Gorbachev deu início a uma nova era de convívio com o Ocidente. Em 1985, ano em que chega ao poder, suspende os testes nucleares. O desarmamento é a prioridade da sua política externa. Ficam célebres as suas cimeiras com os EUA, quando Ronald Reagan e depois George Bush, lideravam o chamado “mundo livre”. Pede a Reagan o cancelamento da célebre “Guerra das Estrelas”. Nas cimeiras seguintes, cresce a confiança entre os dois líderes das superpotências. Reagan confia nele e pede-lhe que derrube o Muro de Berlim. O que acontece mesmo no dia 9 de Outubro de 1989, sem que seja derramado uma gota de sangue. Metade da Europa, todo o leste do continente, liberta-se finalmente do colete comunista. Revoluções, maioritariamente pacíficas, varrem a Polónia, Hungria, Alemanha Democrática, Checoslováquia e, mais violentamente, a Roménia. Em casa, Gorbachev luta para controlar as reivindicações secessionistas das repúblicas constituintes do seu império: os Estados Bálticos, o Azerbaijão, a Arménia, a Geórgia. Entretanto, em 1989, havia retirado as suas tropas do ‘Vietname soviético’, assim ficou conhecida a desastrosa invasão do Afeganistão pelos russos, que começara 10 anos antes. Tudo isto vale-lhe o Prémio Nobel da Paz, em 1990.
Odiado dentro, amado fora
A contestação interna sobe, avassaladoramente, de tom. Em 1991, o domínio do partido comunista é posto em causa, pelo liberal Boris Yeltsin. A posição de Gorbachev torna-se cada vez mais vacilante. Por um lado, é acossado por Yeltsin, por outro pelos conversadores comunistas que a todo o custo tentam deter a implosão crescente da União Soviética. Em Agosto de 1991, um grupo de ultraconservadores, liderado por Guennady Yanaiev, então vice-presidente, tenta tomar o poder através de um golpe de Estado, enquanto Gorbachev estava de férias na Crimeia. Ao fim de três dias de enorme tensão, o ‘golpe de direita’ – na União Soviética esta expressão significava uma acção levada a cabo pelos comunistas ortodoxos – é abortado. Mas quem sai vitorioso dele é Boris Yeltsin que discursa corajosamente em cima de um carro de combate. Gorbatchov está cansado, sendo completamente ultrapassado pela dinâmica dos acontecimentos.
O Fim da URSS
Finalmente, no dia de Natal de 1991, Gorbatchov renuncia ao cargo de presidente da URSS. A 27 de Dezembro sai completamente da cena política de um país a desmoronar-se. Yeltsin sobe ao poder. Muito mais tarde, a este respeito, Gorbatchov diria numa entrevista: “Fui, provavelmente, demasiado democrático no que diz respeito a Ieltsin. Devia tê-lo enviado como embaixador na Grã-Bretanha ou para uma antiga colónia britânica.”
Nos anos seguintes, sofre mais um duro golpe com a morte da mulher, Raisa. Começa a percorrer o mundo como conferencista. Funda uma instituição de caridade, a Green Cross International, que se centra no legado nuclear e ambiental tóxico da guerra fria.
A relação com Putin
A relação de Gorbachev com Putin não era propriamente amistosa, mas em termos de política externa o último presidente da URSS apoiou a intervenção militar russa na Geórgia, em 2008, e a anexação, em 2014, da península ucraniana da Crimeia.
Nos últimos anos, Gorbachev revelava-se preocupado com lento e sistemático esmagamento da sociedade civil por Putin. Em várias intervenções, acusou-o de transformar o partido Rússia Unida numa má cópia do Partido Comunista, e de autoritarismo. Na sequência disso, os meios de comunicação social estatais apelidaram-no de “fantoche da CIA” e o homem responsável pelo colapso da União Soviética – “a maior catástrofe política do século XX”, como disse Putin.
Alexei Venediktov, um amigo e antigo chefe da estação de rádio Ekho Moskvy, disse recentemente que, em privado, Gorbachev estava “perturbado” com a invasão da Ucrânia e afirmou que, sob Putin, o seu “trabalho de vida” tinha sido “destruído”. Entretanto, o Kremlin já fez saber que Gorbatchov não terá um funeral de Estado.